Náufrago à Deriva
Recomendo
V.S.Naipaul, embora pouco lido no Brasil, é um escritor contemplado com o nobel de literatura, exatamente por essa obra: Os Mímicos. Nascido em Trinidad Tobago, descendente de indianos, transferiu-se para Londres ainda nos anos 50, aonde reside até o presente. Essa resenha é o produto de uma releitura. Meu primeiro contato com o livro foi em 1988. Na época a experiência não deixou boa impressão. Não é uma leitura simples. Naquela ocasião estranhei o estilo: linguajem econômica, ideias condensadas, retomadas frequentes de detalhes mencionados no decorrer do texto, algumas passagens de significado opaco. Tudo cobra do leitor concentração. Essa primeira leitura me exigiu perseverança para concluí-la. A releitura 28 anos mais tarde e o amadurecimento que logrei no período contribuíram para que o livro me proporcionasse prazeres e sabores que degustei com surpreendente deleite. O roteiro apresenta evidentes pinceladas autobiográficas. O personagem principal - Ralph Singh - decide escrever sobre sua trajetória de vida. Ele nasceu em uma ilha fictícia do Caribe denominada Isabella. O local é uma colônia britânica cuja demografia divide-se entre descendentes de escravos africanos, asiáticos e a comunidade branca. O personagem integra a comunidade indiana. O livro vai abordar quatro períodos bem demarcados da trajetória do autor: o período de formação acadêmica em Londres, seu casamento com uma inglesa e seu retorno para Isabella, sua infância na ilha e finalmente a última fase abarca sua atribulada experiência como importante liderança política em Isabella. O foco da obra é o permanente sentimento de deslocamento, a sensação de não pertencimento do personagem com relação a sua ilha de origem. Lá ele sentia-se um náufrago, à deriva. A vontade imperiosa era ir embora para seu lugar verdadeiro. A ilha/colônia era uma sociedade desordenada, caótica, pobre, causava constrangimento. Esse ultimo resultava em uma postura de negação, de não identificação com o lugar. Uma passagem que relata uma recordação do cotidiano escolar do autor é bastante ilustrativa desse sentimento de aversão: "Havíamos convertido nossa ilha num enorme segredo. Tudo o que dizia respeito a nossa vida cotidiana provocava risadas quando era mencionado em sala de aula: o nome de uma loja, de uma rua, das comidas vendidas na esquina. O riso era um modo de negar que conhecíamos estas coisas, às quais haveríamos de voltar depois das aulas. Negávamos a paisagem e as pessoas que víamos pelas portas e janelas abertas, nós que levávamos maçãs para nossos professores e escrevíamos redações sobre visitas a fazendas com climas temperados" O remédio para afastar-se daquela sociedade truncada, desarrumada e miscigenada era o plágio. Esforçar-se por encenar hábitos do mundo externo. "Todos assumíamos a postura de pessoas cosmopolitas ... Isso era fácil para nós, pois em Isabella, éramos todos imitadores natos ... Nós os mímicos do Novo Mundo". O autor debita essa sociedade desordenada e constrangida na conta do Império e suas ações, sobretudo por promover o transplante e a "convivência forçada entre povos que só poderiam se realizar na segurança de suas próprias sociedades". Também, chama a atenção a abordagem crua com que o autor trata questões que, na atualidade, seriam avaliadas com muita reserva por ferir a suscetibilidade politicamente correta vigente em nossos tempos. Assim, Ralph Singh ao chegar a Londres e deparar-se com a postura dos políticos britânicos de regozijar-se com suas origens pobres, surpreende-se: "Em Isabella, quando eu era pequeno, ser pobre era uma coisa vergonhosa. Infelizmente, agora não é mais. E fiquei atônito, quando vim para a Inglaterra pela primeira vez, ao constatar que aqui também não era. Cheguei numa época de reformas. Os políticos jactavam-se de suas origens humildes e, cheios de uma cólera virtuosa, afirmavam ter sido moleques descalços. Em Isabella, onde havia moleques descalços em profusão, esta expressão era muito empregada pelas crianças como xingamento; e eu, colocando-me no lugar destes grandes homens, sentia vergonha. Descender de gerações e gerações de vagabundos e fracassados, uma linhagem ininterrupta de gente sem imaginação, sem iniciativa e oprimida, sempre me parecera motivo para sentir uma vergonha profunda e inconfessa". Ou ainda essa outra passagem onde o personagem descreve sua reprovação à atitude de imigrantes africanos nos salões de dança do Conselho Britânico que frequentava a procura de companhia feminina: "às vezes o ambiente era desagradável, cheio de africanos de sotaques ásperos com colarinhos brancos muito engomados e óculos com armações de ouro, cultivando seus ressentimentos raciais como se fossem virtudes e buscando sua recompensa sexual entre jovens que não tinham nenhuma culpa". Por fim, a obra oferece um retrato implacável de uma sociedade situada à margem, afastada do eixo principal do mundo, ao mesmo tempo em que disseca, sem piedade, mas com talento, os dramas e constrangimentos que atormentam e enredam os personagens que a povoam.
Mário
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