A vida adulta mostrada sob os signos do desamparo e das escolhas que fazemos
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António Lobo Antunes, com seu vanguardismo extraordinário e experimental, nos presenteia com um relato pungente de uma vida marcada pelas escolhas e que ruma ao inevitável destino trágico que nos espera. O enredo é simples: Rui S., professor universitário de História e escritor, filho de pais da alta burguesia lisboeta, é casado em segundas núpcias com Marilia, a quem se uniu mais por afinidade intelectual (o cinema, por exemplo, é citado mais de uma vez) do que por amor ou paixão carnal. Sua família, dona de negócios importantes em Portugal, sobretudo o pai, varão de respeito, e os cunhados e irmãs, o desprezam por ter tomado rumos diferentes do que se esperava do primogênito homem. Seu envolvimento indolente com o comunismo na juventude (em plena ditadura do Estado Novo) e, posteriormente, também, por virtude de Marilia ser militante do Partido Comunista Português, somado à recusa de assumir um lugar nos empreendimentos familiares, preferindo, assim, o mundo acadêmico, faz com que os fios que tecem e sustentam os relacionamentos consanguíneos sejam rompidos, restando assim nada além de desprezo, desdém e distanciamento irremediável. O romance se passa durante quatro dias, de quinta-feira a domingo, em uma viagem a Aveiro, na qual Rui planeja pedir o divórcio a sua esposa. Em meio a divagações, inúmeros tópicos são abordados: seu primeiro casamento - terminado de forma abrupta e unilateral -, seu relacionamento com a família (sobretudo com o pai, a quem pede que “lhe explique os pássaros”, obsessão do personagem principal), o relacionamento com sua atual esposa, seu comportamento irresoluto e pusilânime perante certas situações… Identifica-se em Rui uma certa pátina de desarranjo para com sua realidade, expressada em seu tom insatisfeito com tudo que o cerca, um tom ora melancólico, ora doloroso, sempre negativo. Tratando-se da forma: é um texto narrado de maneira a fugir da linearidade, traço marcante das obras de Lobo Antunes. Romance polifônico, lança mão de múltiplas vozes que constroem gradativamente a imagem do personagem com suas opiniões definitivas e cortantes. Os tempos são sobrepostos, mesclando passado, presente e, também, um tempo imaginário, meio onírico, até epifânico, que mostra a imagem que Rui faz de si. Fragmentos de tempos se misturam e convergem em um mesmo período, sempre longo, sem avisos prévios, montando um quebra-cabeças narrativo que sempre se completa de maneira magistral, o que faz com que se exija certa astúcia e grande concentração do leitor. Vale a menção de que narrador e personagem também se misturam e se confundem nas mesmas frases, cabendo ao leitor diferenciá-los por meio da primeira e da terceira pessoa do singular. É um livro difícil, árduo, requer um leitor paciente e atento, mas a leitura, uma vez que se entende a linguagem aplicada, torna-se prazerosa e recompensadora, com trechos de excepcional beleza.
Guilherme
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